Duas semanas após chegarem a Nova Déli, capital da Índia,
para trabalhar como modelos, a paulista Monique Menezes, de 21 anos, e a gaúcha
Thelma Kaminski, 19, estranharam quando sua agente disse que elas passariam a
noite numa festa.
No evento, que terminou de madrugada e não estava previsto no
acordo fechado no Brasil, afirmam que tiveram de servir uísque na boca de
homens, que as assediaram e tentaram acariciá-las.
Foi o primeiro sinal de que a viagem, até então encarada como
uma valiosa chance de ascensão profissional, não acabaria bem. 'Depois daquele
dia, ficamos assustadas, mas continuamos trabalhando', diz Menezes à BBC
Brasil. 'Estava lá para juntar dinheiro, pretendia comprar uma casa quando
voltasse.'
As condições, porém, se agravaram. Segundo elas, em vez dos
US$ 2.100 que deveriam receber por mês da agência Be One Talent, gerida pela
francesa Sabrina Savouyaud, ganhavam US$ 160.
As sessões de fotos eram progressivamente substituídas por
novos trabalhos em festas como hostesses ou balconistas, quando eram
continuamente assediadas. Savouyaud, dona da casa onde estavam hospedadas,
passou a maltratá-las.
'Ela nos insultava, dizia que estávamos gordas', conta
Kaminski. 'Uma vez, tomou a comida das nossas mãos.'
A falta de higiene na residência, dizem as modelos, fez com
que adoecessem. 'A casa tinha 18 cachorros e três gatos. Os cachorros comiam
nas nossas panelas e os gatos urinavam nas camas', afirma Menezes.
Alarmadas com a situação, buscaram na internet informações
sobre a agente. Encontraram numerosos relatos na imprensa indiana de outras
modelos que acusavam a francesa de maus-tratos.
Multa
Em fevereiro deste ano, pouco após completarem um mês na
Índia, as duas procuraram o consulado brasileiro em busca de ajuda. Só então
souberam que os contratos que haviam assinado ainda no Brasil, em inglês,
previam multa de US$ 500 mil caso abandonassem o trabalho antes do prazo de
seis meses. Os acordos haviam sido propostos por 'scouters' (olheiros)
brasileiros. Por temer represálias, elas preferem não nomeá-los.
'Ele me explicou que eu ganharia 50% de todos os trabalhos
que fizesse, mas não disse nada sobre a multa nem sobre as festas', diz
Menezes. 'Como não falava inglês na época, assinei na base da confiança.'
Os diplomatas lhes disseram que o exagerado valor da multa
invalidava os contratos e ofereceram ajuda para hospedá-las caso quisessem
deixar a casa da agente. Antes, porém, as duas procuraram Savouyaud para exigir
os cachês pelos trabalhos, que, conforme o contrato, só seriam pagos no final
da viagem.
Menezes calcula que tinha US$ 5 mil a receber; Kaminski, US$
10 mil. 'Mas ela disse que, como tínhamos quebrado o contrato, não pagaria nada
e ainda cancelou nossos bilhetes de volta', diz Menezes.
As duas deixaram a casa e se hospedaram no hotel pago pelo
consulado. A passagem de Kaminski foi comprada por seus pais; a de Menezes, por
um empresário indiano que se compadeceu ao ouvir a história. 'Ao entrar no
avião, nos abraçamos e choramos', lembra Kaminski.
A BBC Brasil tentou contatar a Be One Talent, mas as
mensagens enviadas à agência não foram respondidas.
Relatos frequentes
Segundo o Ministério de Relações Exteriores, relatos como
esse têm se tornado cada vez mais comuns. 'É um fenômeno recente, estimulado
pelo grande sucesso das tops brasileiras nos últimos anos', diz à BBC Brasil
Luiza Lopes da Silva, diretora do Departamento Consular e de Brasileiros no
Exterior.
Ela diz que, nos últimos anos, ao menos 20 modelos
brasileiras relataram ter sofrido maus-tratos na Ásia. Lopes afirma, no
entanto, que 'essa é apenas a ponta do iceberg'.
'Calculamos que entre 100 e 200 modelos brasileiras possam
estar nessa situação na Ásia neste momento.' Além da Índia, país com maior
número de queixas, já foram registrados casos na China, Coreia do Sul,
Filipinas, Malásia e Tailândia.
'Pouquíssimas denunciam as condições, por temerem represálias
no Brasil', diz a diplomata. 'Como muitas estão irregulares, acham que não têm
direitos.'
Segundo Lopes, o Itamaraty tem orientado sua rede consular a
colher o máximo de informações sempre que receber denúncias de modelos no
exterior, para identificar outras brasileiras que estejam na mesma situação. Os
esforços do órgão, no entanto, têm se concentrado na prevenção.
'Fazer o trabalho de detetive é difícil e o faremos, mas sem
uma ação de prevenção estaremos enxugando gelo.'
Cartilha
Para evitar novas ocorrências, o Itamaraty lançou em maio uma
Cartilha de Orientações para o Trabalho no Exterior. A publicação, disponível
na internet e distribuída à rede consular brasileira, têm como principais
públicos-alvo modelos e jogadores de futebol.
A cartilha faz uma série recomendações a quem receber oferta
de trabalho no exterior, como preferir a negociação com empresas de grande
porte e registrar-se na Embaixada brasileira assim que chegar ao país de
destino.
O compêndio também lista entidades privadas e representações
diplomáticas que podem auxiliá-lo se enfrentar dificuldades. Nos casos em que a
vítima estiver debilitada e não puder arcar com a volta, diz a diplomata, o Itamaraty
poderá bancá-la.
Segundo Lopes, entre as modelos, as principais vítimas estão
no começo da carreira. Costumam ser recrutadas por olheiros em shoppings,
concursos de beleza e discotecas. No exterior, o trabalho consiste geralmente
em sessões fotográficas em galpões nas periferias de grandes cidades, para
estampar catálogos de lojas e sites. Vivem confinadas e recebem menos do que
deveriam.
A diplomata afirma que não foram identificados casos de
modelos aliciadas para exploração sexual, mas que algumas dançarinas
brasileiras na Turquia disseram ter sido pressionadas para se prostituir.
Embora ainda pouco denunciados, os casos de modelos
brasileiras exploradas na Índia estão sendo tratados por uma CPI (Comissão
Parlamentar de Inquérito) na Câmara dos Deputados que investiga o tráfico de
pessoas. Em sessão fechada no último dia 19, a modelo Ludmila Verri, de 21
anos, relatou ter enfrentado no país asiático condições semelhantes às
denunciadas por Kaminski e Menezes.
O caso de Verri, que passou três meses em Mumbai em 2010 com
duas colegas, também é objeto de uma ação do Ministério Público Federal (MPF).
Fim da carreira
Enquanto o MPF age para desnudar o esquema, Monique Menezes
diz tentar reorganizar sua vida em São Paulo. Após voltar da Índia, ela deixou
de ser modelo e perdeu o contato com os pais.
'Eles tinham muitas expectativas com a viagem e não aceitaram
minha volta antes do prazo', ela conta. 'Acham que voltei porque fui fraca,
porque quis.'
Hoje, a jovem trabalha como recepcionista de uma
transportadora. 'Além de voltar sem nada, essa experiência destruiu minha
vida.'
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