quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

10 DE DEZEMBRO DIA MUNDIAL DOS DIREITOS HUMANOS

UMA PERSPECTIVA DE GÊNERO NOS DIREITOS HUMANOS


A partir dos anos 90, grupos e entidades feministas têm impulsionado o debate pelo reconhecimento dos direitos humanos das mulheres. Esse processo foi intensificado pela realização da Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993. Mulheres do Oriente e do Ocidente, a partir de propostas elaboradas separadamente entenderam que o encaminhamento mais adequado deveria ser a fusão das propostas e sua integração no texto da Declaração Universal para torna- lá mais abrangente, incluindo os direitos humanos das mulheres.

A participação nesta Conferência foi parte da estratégia de intervenção nas diversas conferências e cúpulas mundiais que foram realizadas na década: a Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994) e a Cúpula sobre Desenvolvimento Social ( Copenhague, 1995). No entanto, foi na Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher (1995), realizada em Beijing, na China, onde as mulheres organizadas questionaram explicitamente a (des)ordem mundial vigente e sua lógica de exclusão crescente.

Desta Conferência surgiram a Declaração de Beijing e a Plataforma de Ação, acordos construídos de forma consensual pelos países membros das Nações Unidas e com o apoio dos movimentos de mulheres organizados e inúmeras entidades não governamentais (ONGs). Estes documentos formulam um programa mundial de igualdade, defesa dos direitos humanos das mulheres e promoção de sua plena cidadania. Mas esta é uma idéia que vem de longe, entre as mulheres.

Já na época da Revolução Francesa, Marie Olympe de Gouges, atriz e teatróloga, apresentou uma proposta de “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” e lutou para que as conquistas revolucionárias não se tornassem de uns poucos, excluindo as mulheres, as crianças e os loucos. Na sua Declaração ela defendeu que “se a mulher tem o direito de subir ao cadafalso, ela deve ter igualmente o direito de subir à tribuna”. Foi perseguida e julgada pelo tribunal revolucionário: acabou guilhotinada em novembro de 1793. Subiu ao cadafalso e não à tribuna.

Muitos foram, a partir de então, os momentos em que as mulheres lutaram pelos direitos cívicos, como o direito à educação pública e o direito ao sufrágio (voto). Recentemente, por ocasião da aprovação da Carta Brasileira de 1988, foram incansáveis na luta pela garantia de seus direitos, sendo consideradas um dos grupos mais eficientes no acompanhamento e controle de suas propostas junto ao Congresso Nacional. Por ocasião das comemorações do 50º aniversário da Declaração de 48, e para que seja aprovada na 53º sessão, de dezembro de 1998, da Assembléia Geral das Nações Unidas, vem sendo discutida entre as entidades e organismos de mulheres uma "Proposta de Declaração de Direitos Humanos numa Perspectiva de Gênero". O que isto significa?

0 texto de Declaração Universal de 1948 embasa-se em um conceito de direitos humanos historicamente construído a partir do paradigma do homem branco e ocidental, reificado como universal. Por isto, um processo de reinterpretação está em curso, com a constatação por parte das mulheres de que os instrumentos e mecanismos internacionais de Direitos Humanos são insuficientes e inadequados para as necessidades e demandas femininas. "O sexismo presente na concepção de direitos humanos exclui as mulheres da condição de humanas", diz a jurista costarriquense Alda Facio.

Recentemente tem surgido no campo do direito uma tendência à especificação, ou seja, a uma "passagem gradual, porém cada vez mais acentuada, para uma ulterior determinação dos sujeitos titulares de direitos". Como aconteceu com o conceito de liberdade, que foi paulatinamente incorporando suas especificações, de expressão, de culto, de reunião, etc., tornando assim a liberdade concreta e palpável, a mesma mudança está sofrendo o conceito de direito.

E Bobbio acrescenta: "essa especificação ocorreu com relação seja ao gênero, seja às diferentes fases da vida, seja à diferença entre estado normal e estados excepcionais na existência humana. Com relação ao gênero, foram cada vez mais reconhecidas as diferenças específicas entre a mulher e o homem".

A criação de novos instrumentos específicos em relação à mulher - como a Declaração Sobre a Eliminação da Discriminação à Mulher em 1967, e a Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, em 1979, assinadas por grande número de países -, têm atenuado mas não enfrentaram totalmente a questão da excludência feminina. Os acordos de Beijing têm sido importantes instrumentos de pressão aos governos, para implementação de mecanismos de igualdade de oportunidades entre mulheres e homens, e mudanças nas relações de gênero ainda marcadas pelas desigualdades. "Justifica-se, assim, a necessidade de redefinição do conceito de direitos humanos sob uma perspectiva de gênero, a partir de uma leitura da realidade que torne visível a complexidade das relações entre homens e mulheres, revelando as causas e efeitos das distintas formas em que se manifestam estereótipos e discriminações".

O paradigma masculino do Humano implica na hegemonia do poder patriarcal, que se expressa não só na linguagem mas também no invisível exercício cotidiano do poder de opressão sobre as mulheres e na sutil aceitação cultural da subordinação. Considerando, então, que quando se fala em Direitos Humanos se faz referência aos direitos de alguns homens (brancos, heterossexuais, e com recursos econômicos) da Europa e dos EUA (o que marca o caráter eurocêntrico dos princípios), torna-se necessária e urgente uma redefinição que possa incorporar o princípio da pluralidade e captar a universalidade das diferenças humanas.


DIREITOS DAS MULHERES

Para entendermos a necessidade de reconstrução de uma proposta de Direitos Humanos para as mulheres devemos começar por definir alguns conceitos existentes. A começar pelo feminismo, que emerge como tentativa de desvendar a dimensão histórica do papel das mulheres, (atrelada, por longo tempo, a explicações deterministas a partir da identidade biológica e social feminina), dando assim uma contribuição fundamental para a mudança dos paradigmas da sociedade moderna. O sistema patriarcal tem secularmente procurado controlar a sexualidade feminina como forma de garantir a posse da terra e da herança familiar. Assim desde que o homem conhece seu papel no ciclo reprodutivo, o controle da virgindade e fidelidade femininas torna-se questão central nas sociedades agrícolas de assentamento. É fato conhecido em diferentes culturas que a transgressão da virgindade ou o adultério da mulher era punido com a morte. Assim as mulheres foram relegadas ao âmbito da casa e da criação dos filhos, enquanto os homens saíram para o mundo do trabalho, do poder, da guerra e do conhecimento.

As representações sociais por isso, basearam-se na domesticação das mulheres a partir da biologização da sua identidade, justificando sua exclusão e permitindo ao mesmo tempo ao homem usufruir do espaço público a elas vedado. Enfim, foi dos homens o mundo do domínio público correspondendo às mulheres o mundo do privado, desenvolvendo-se ali uma submissão introjetada como inferioridade em relação ao homem. Portanto os direitos humanos de nossa época nasceram de um ponto de vista mundial que se baseia na opressão das mulheres e sua confinação ao domínio privado. Com essa privatização, as violações de direitos contra as mulheres se fizeram invisíveis, esvaziadas do seu sentido público e, portanto, da sua significação política. É necessário, então, encontrar e definir na perspectiva das mulheres, algumas áreas ou questões de especial necessidade de atendimento:

1- Direito a viver livre de violências:

Quem não ouviu já um velho ditado popular que diz "em briga de marido e mulher ninguém mete a colher"? Pois nós dizemos assim: "se mete a colher,sim". Sabemos que, na atualidade, a Violência contra as mulheres tem cifras alarmantes e crescentes, e que o maior número de violências são cometidas contra meninas e mulheres (dentro de suas próprias casas!) pelas mãos de pais e maridos ou companheiros, fazendo destes casos um número superior a 70% das denúncias. Não se trata só de violência sexual doméstica, que inclui a violência física, a violência psicológica, o estupro e o incesto. Mas também o assédio sexual nos locais de trabalho, praticado por colegas e chefes, a violência nas ruas, nos meios de comunicação e nas instituições, especialmente na área da Saúde. Nesse caso, a violência se dá tanto no maltrato no atendimento quanto na sem consentimento. Cabe também mencionar, em se tratando de violações aos direitos humanos das mulheres, que em situações de guerra ou repressão de Estado tem se recorrido inúmeras vezes as torturas sexuais e tratamento degradante, como a gravidez forçada e métodos de "limpeza étnica". Finalmente, não se pode deixar de mencionar formas que - por tradicionais e difundidas - não deixam de ser assustadoras, como o tráfico de mulheres, a prostituição, a escravidão e o turismo sexual. Os jornais estampam diariamente estas violências específicas e terríveis contra as mulheres.

2- Direito à Saúde:

Este é, com certeza, outro campo de conflitos. E que impõe a necessidade de reflexão sobre os direitos humanos das mulheres. A partir dos anos 70 no Brasil, e como produto do feminismo crescente, surgiram inúmeros grupos de mulheres que começaram a trocar experiências e refletir sobre sua condição e seus desejos. Nestes espaços de fala coletiva "perceberam que sua casa, seu trabalho, e seu corpo são lugares onde os outros realizavam seus desejos e poderes. As demandas nascem de fora: filhos, maridos, igrejas, empregadores, indústrias farmacêutica e biomédica, planejadores demográficos, meios de comunicação...". Ou seja, a sexualidade e a reprodução tinham sido transformadas em lugares de intervenção política e de exercício de poder. Foram precisos muitos anos e muitos debates para que o movimento de mulheres pudesse organizar suas propostas na área de saúde. Até agora, seu melhor compêndio é o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), que se encontra só parcialmente implementado. Recentemente surgiram também os "Direitos Reprodutivos", expressão que tem sido muito usada nos meios feministas, embora já criticada por muitas mulheres. Na realidade, é difícil falar em direitos da reprodução quando as mulheres especialmente as pobres, em todo o mundo, vêm sendo esterilizadas por se colocar na "excessiva" população a causa da miséria. No Brasil até 1989, 44% das mulheres em idade fértil e que usavam algum tipo de contraceptivo estavam esterilizadas. De lá para cá esse número não tem feito mais que crescer. O número médio de filhos por mulher era em 1970 de mais de 6 , passando na presente década a ser de 1,6 em média: uma diminuição brutal da taxa de crescimento populacional. Como tod@s sabemos, isto não tem sido motivo de melhoria das condições de vida da população brasileira, que ainda amarga o 68º lugar em desenvolvimento humano e está entre os países com maior concentração de renda do planeta.

A crítica mais uma vez disseca o discurso liberal, que parte das sociedades individualistas contra uma visão que venha a privilegiar a autonomia das mulheres exercida dentro de um contexto politizado. Uma autonomia com responsabilidade sobre o destino da própria vida e da sociedade. "Será no século XXI um direito reprodutivo optar pela clonagem como modo de procriação? Pode considerar-se um direito reprodutivo criopreservar (congelar) um embrião para ser implantado em útero alugado? Deve considerar-se um direito reprodutivo uma gravidez menopáusica?... As mulheres farão suas escolhas sobre a ética do possível? Aos poucos, vem se reconhecendo a complexidade teórica e prática que o tema das novas tecnologias conceptivas tem incorporado ao campo do debate sobre os direitos reprodutivos". E continua Rotania, se de um lado, "o conceito conquistou legitimidade cultural, teórica e política; por outro lado aspectos externos e internos ao campo feminista parecem indicar o esgotamento do chamado "direito de escolha".

3- Direito à participação política:

O direito de participar nos espaços de decisão política é uma reivindicação mais recente dos movimentos de mulheres. Este é um lugar extremamente simbólico do domínio público, onde as mulheres ainda têm uma participação limitada. Como diz Borba ,"política ainda não é lugar de mulher". Verificando, por exemplo, o número de deputadas, podemos apontar que, se existe uma tendência de crescimento, ainda é insuficiente para se falar em notórios avanços. Se nos anos 30 as mulheres representavam 1% do Parlamento, na legislatura 1995-98 o número é de 34 em um total de 513 deputados federais. Ou seja, menos de 7%. Analisando os números da eleição para a Legislatura 99-02, entre os 45 deputados eleitos pelo Estado do Rio de Janeiro para a Câmara Federal, constatamos que somente quatro são mulheres, o que significa menos de 10% da bancada federal fluminense. Foram eleitas também 9 deputadas estaduais em uma bancada de 70, o que faz com que aproximadamente 12 % de mulheres sejam representantes no Parlamento Estadual. No sentido de melhorar esta participação tem sido importante a inclusão de cotas de candidatas na legislação eleitoral, bem como algumas experiências de cotas partidárias para incorporação de mulheres nas direções partidárias. Estes exemplos revelam a adoção de incentivos, mecanismos cada vez mais utilizados em diversos países para alcançar a igualdade de gênero. As chamadas Ações Afirmativas têm sido introduzidas especialmente no debate da participação política como uma estratégia das mulheres para incentivar políticas de igualdade de oportunidades. E no sentido do reconhecimento da discriminação e o desenvolvimento de medidas para eliminá-las.

4- Direito ao trabalho:

Finalmente este é outro espaço onde é preciso avançar na formulação de direitos para modificar uma situação aviltante de enormes diferenças salariais e desigualdades gritantes. Quando as mulheres se incorporaram ao mercado de trabalho produtivo, o fizeram acumulando suas tradicionais obrigações com a reprodução da vida e o cuidado de crianças e idosos. Isto significou uma enorme sobrecarga de trabalho para as mulheres, expressa na chamada dupla jornada de trabalho. É importante mencionar também que as mulheres no Brasil, sempre participaram do mercado de trabalho, gerando riqueza apesar da ausência de remuneração. E que foram importantes protagonistas dos movimentos comunitários de luta por moradia, saúde e saneamento, creches e educação básica, etc. e que muitos autores consideram como tripla jornada.
Com este esclarecimento preliminar, podemos passar a considerar que, nos últimos anos houve um importante aumento da participação econômica feminina formal, que aumentou de 33,42% da população ocupada ( 1985) para 37,95% ( 1995), sendo o processo de incorporação das mulheres ao mercado de trabalho, mais dinâmico que o dos homens. Porém, e apesar da relativa diversificação das ocupações femininas "o serviço doméstico remunerado ainda é a ocupação principal das brasileiras". Isto coloca em evidência mais um aspecto da desigualdade de incorporação das mulheres ao mundo do trabalho. As atividades remuneradas realizadas pelas mulheres continuam sendo aquelas que significam uma "extensão" do lar. Se consideramos as profissões tradicionais: professoras, enfermeiras, costureiras, operárias do setor têxtil, além das trabalhadoras rurais comerciarias e empregadas domésticas, temos 80% da mão de obra feminina do país. Ao levar em conta a renda resultante do trabalho, continuamos encontrando um cenário de desigualdades. No conjunto das atividades urbanas e rurais, os homens recebem o dobro das rendas usufruídas pelas mulheres. Todo este quadro se agrava ao incluir dados referentes ao desemprego, que em 1997 mostrava uma taxa de 6,53% maior que a dos homens de 5,38%1 As desigualdades de gênero no mercado de trabalho, como vemos, são fortes e continuam gravemente marcadas pela desvalorização das mulheres e a falta de igualdade de oportunidades.Falta ainda bastante caminho por percorrer...

UMA NOVA GERAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS

É hora de começar a olhar com novos olhos essa perspectiva de mundo e de direitos ideológica e politicamente construída, num contexto histórico ultrapassado e com um modelo de homem universal que não incorpora as diversidades. Sem negar a importância que a Declaração Universal dos Direitos Humanos teve nestes últimos cinqüenta anos, podemos nos preparar para avançar, e ao incorporar a perspectiva de gênero, abrir o leque do plural. "Enquanto tratamos de estender os horizontes e aprofundar o discurso dos direitos humanos existentes, necessitamos também de uma nova geração de direitos humanos. Necessitamos mudar o paradigma que concebeu os direitos humanos como direitos dos poderosos, necessitamos escutar as vozes daqueles que não compartilham desse poder. Necessitamos ver essas violações através dos olhos das vítimas, vítimas do desenvolvimento, do progresso, da ciência e da técnica; (....) através dos olhos dos impotentes,(....) daqueles cujas culturas têm sido destruídas, daqueles que têm estado nas margens, nos flancos; através dos olhos daqueles do Sul, no Sul e daqueles do Sul, no Norte; através dos olhos das mulheres...." Juntos, mulheres e homens poderemos fazer uma história diferente. O desejo amoroso e responsável com a humanidade e as gerações futuras pode nos guiar.

* Texto de autoria de Graciela S. Rodriguez: mestre em Sociologia Rural pela Universidade Nacional de Córdoba (UNC), Diretora do "Ser Mulher" (Ong feminista), membro da Secretaria Estadual de Mulheres do PT /RJ e Conselheira do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher /RJ ( CEDIM).

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