Por: Tulio Vianna*, na Revista Fórum.
Em 28 de setembro, mulheres de toda a América Latina saem às
ruas para lutar por um direito que já é garantido há tempos às européias,
estadunidenses e canadenses: o direito de interromper uma gravidez indesejada.
É o Dia pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe.
O aborto não é crime na maioria esmagadora dos países
desenvolvidos. Nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa, se uma mulher desejar
interromper uma gravidez por questões socioeconômicas, poderá fazê-lo sem
maiores riscos para sua saúde em um hospital, de forma plenamente legal.
No Brasil, o aborto é tratado como crime e tanto a mulher que
o praticar, como quem de qualquer forma auxiliá-la, poderão ser presos. Os
rigores da legislação brasileira, porém, não impedem que os abortos sejam
realizados clandestinamente. A Pesquisa Nacional do Aborto, publicada pela
Universidade de Brasília (UNB) este ano, estimou que 1 em cada 5 mulheres
brasileiras já realizaram aborto, sendo que metade delas foram internadas
devido a complicações causadas pelo procedimento.
Uma pesquisa realizada pela Universidade de São Paulo (USP)
constatou que, entre 1995 e 2007, a curetagem pós-aborto foi a cirurgia mais
realizada no Sistema Único de Saúde (não foram levadas em conta cirurgias
cardíacas, partos e pequenas intervenções que não exigem a internação do
paciente). Foram 3,1 milhões de curetagens e estima-se que a maioria delas
sejam decorrentes de abortos provocados.
Por que então não garantir às brasileiras o mesmo direito ao
aborto já garantido às norte-americanas e europeias e evitar tantos riscos
desnecessários à sua saúde?
Direito à vida
O argumento central de quem é contrário à legalização do
aborto é que a vida humana surge no momento da concepção e que, a partir de
então, este seria um direito a se garantir ao embrião. Claro que esta é uma
concepção de cunho exclusivamente religioso.
Cientificamente, não é possível se determinar ao certo quando
começa a vida humana. Nas 12 primeiras semanas de gestação (período em que o
aborto é permitido, na maioria dos países onde é legalizado), o feto ainda não
desenvolveu seu sistema nervoso e para considerá-lo vivo neste estágio, seria
preciso rever o próprio conceito jurídico de morte. Isso porque a lei 9.434/97
permite o transplante de órgãos desde que haja morte cerebral, ainda que,
eventualmente, o coração continue a bater. E, se é a morte cerebral que indica
o fim da vida, é razoável entender que o início da vida humana surge com a
“vida cerebral”, o que seria impossível nas primeiras 12 semanas, antes da formação
do sistema nervoso do feto.
No entanto, o conceito de vida defendido pelos opositores da
legalização do aborto parece ser bem mais amplo do que qualquer um que possa
ser estabelecido por critérios científicos.
Infelizmente, o debate sobre o aborto no Brasil não se faz
com base em constatações científicas ou jurídicas. O aborto é discutido no
Brasil com base em dogmas religiosos, como os do arcebispo de Olinda e Recife
Dom José Cardoso Sobrinho, que excomungou os médicos e os parentes de uma
menina de 9 anos de idade que foi estuprada por seu padrasto e precisou
realizar um aborto para se livrar de uma gravidez de gêmeos que lhe causava
risco de morte. Detalhe: o padrasto que estuprou a menina não foi excomungado
por Sua Excelência Reverendíssima, que considerou este crime menos grave que o
aborto.
É preciso entender, porém, que o Brasil é uma república laica
e, portanto, não se pode admitir que qualquer religião imponha seus dogmas aos
demais, muito menos por meio de criminalizações.
Questão social
A legalização do aborto é uma questão de saúde pública que
atinge quase que exclusivamente as mulheres pobres, que não têm condições
financeiras de arcar com o alto custo de um aborto em alguma das maternidades
de luxo que realizam a cirurgia ilegalmente. Para uma mulher rica que tenha uma
gravidez indesejável, a solução – ainda que ilícita – é recorrer a uma boa
maternidade onde conversando com a pessoa certa e pagando o preço
necessário poderá abortar com toda a infraestrutura e higiene de um bom
hospital.
Ainda que não optem pelo procedimento
cirúrgico, as mulheres de melhor condição socioeconômica têm um acesso muito
mais amplo a informações sobre como realizar o auto-aborto de forma
relativamente segura. Há vários sites internacionais dedicados a esclarecer às
mulheres dos países onde o aborto ainda é proibido como utilizar medicamentos
para este fim. No International Consortium for Medical Abortion , por
exemplo, há informações de como usar o remédio Cytotec (Misoprostol) em
conjunto com o Mifiprex (Mifepristone), de forma a tornar o procedimento um
pouco mais seguro e menos doloroso.
Para a maioria das mulheres brasileiras, porém, este tipo de
informação ainda não é acessível e elas acabam adquirindo o Cytotec no mercado
paralelo e “aprendendo” como usá-lo com o próprio vendedor que, em geral, não
possui qualquer conhecimento médico. Sem informação, utilizam o Cytotec sem
qualquer outro medicamento, obrigando a uma dosagem maior, diminuindo as
chances de sucesso e tornando todo o procedimento mais arriscado e doloroso.
Por se tratar de um comércio ilegal, sem qualquer tipo de controle por parte da
Anvisa, há ainda o sério risco de adquirir um produto falsificado.
Outra significativa parcela de mulheres pobres opta por
realizar o aborto por procedimentos de curetagem ou sucção em clínicas
clandestinas, sem as mínimas condições de higiene e infraestrutura. São
procedimentos bastante arriscados para a vida e saúde delas e muitas acabam
sendo socorridas nos hospitais do SUS, após abortos mal sucedidos. As
complicações não raras vezes levam à morte, sendo o aborto a terceira causa de
morte materna no Brasil, segundo pesquisa do IPAS.
Legalização
A criminalização do aborto não evita o aborto, mas
tão-somente obriga a mulher a realizá-lo na clandestinidade. As ricas pagando
um alto preço pelo sigilo e segurança do procedimento e as pobres relegadas à
própria sorte, em um oceano de desinformação e preconceito.
O debate sobre a descriminalização do aborto não é sobre o
direito ou não de a gestante abortar, mas sobre o direito ou não de a gestante
ter auxílio médico para abortar. A Constituição brasileira garante em seu
artigo 226, §7º, que “o planejamento familiar é livre decisão do casal,
competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o
exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de
instituições oficiais ou privadas”.
O que se vê, porém, no Brasil é uma completa interferência do
Estado no direito da mulher de decidir ter ou não um filho, amparado em uma
interpretação religiosa do direito constitucional à vida. O axioma católico de
que a vida inicia na concepção é apresentado como fundamento “jurídico” contra
a legalização do aborto, no Estado laico brasileiro. É este dogma religioso o
grande responsável pelo cerceamento do direito constitucional ao livre
planejamento familiar.
A criminalização do aborto no Brasil coloca nossas leis ao
lado da tradição legislativa de países do Oriente Médio e da África, ainda
marcada por uma intensa influência religiosa, e nos distancia dos Estados
laicos da Europa e da América do Norte.
Direitos fundamentais, como é o direito à liberdade de
planejamento familiar, não podem ser cerceados com base na fé em dogmas
religiosos. O Estado é laico e ainda que a maioria da população brasileira
acredite que o aborto é um grave pecado que deve ser punido com a excomunhão,
estas concepções religiosas não podem ser impostas por meio de leis que
criminalizam condutas, pois a separação entre Estado e religião é uma garantia
constitucional.
Os abortos acontecem e acontecerão, com ou sem a
criminalização, pois nenhuma lei conseguirá constranger uma mulher a ter um
filho contra sua vontade. Não é um fato que agrade à mulher que se submete a
ele, ao Estado, ou a quem quer que seja. Mas acontece.
Cabe ao Estado legalizar a prática e evitar os males maiores
que são consequências dos abortos realizados sem assistência médica: os danos à
saúde ou mesmo a morte da mulher. Talvez esta mudança na lei não faça muita
diferença para os homens ou para as mulheres ricas que não sentem na pele as
consequências de sua criminalização; mas para as mulheres pobres esta seria a
única lei que, de fato, poderia ser chamada de pró-vida.
*Túlio Vianna é professor da Faculdade de Direito da UFMG.